Por Sérgio Marques Castro
Ao final do ano de 2014, o governo federal publicou no Diário Oficial as Medidas Provisórias 664 e 665/2014, tendente a reformular os requisitos e alcance de inúmeros benefícios previdenciários, tudo com o desiderato óbvio de reduzir custos fiscais ao erário, sem quaisquer medidas compensatórias em favor dos trabalhadores segurados.
O presente artigo possui objetivo de externar as motivações patentes e unívocas da inconstitucionalidade material de tais alterações normativas. O Supremo Tribunal Federal já rechaçou inúmeros atos normativos e posturas governamentais atentatórias à proteção do mínimo existencial e da vedação do retrocesso social, por implicarem elas, ao fim, vulneração à dignidade da pessoa humana.
Outrossim, já pontificou o STF a incidência da regra constitucional da contrapartida (art.195, § 5º, CF) como fator impeditivo da ampliação de contribuições sociais sem o correspondente incremento dos benefícios previdenciários correspectivos (ADI 2.010).
A respeito do tema sob o enfoque da proibição do retrocesso social, a corte já deu guarida a produções científicas nacionais e estrangeiras em que se critica o chamado ‘custo dos direitos’, no sentido de que cabe ao Poder Judiciário intervir em políticas governamentais que, ativa ou omissivamente, no afã de conferir equilíbrio às contas públicas -sempre e invariavelmente sujeitas à dramática escassez de recursos – ceifem direitos fundamentais e sociais umbilicalmente ligados a um mínimo existencial dos indivíduos.
Nesse contexto, já se exprimiram em julgados da Excelsa Corte frases categóricas como o rechaço às ‘escolhas trágicas’ por parte do Poder Público. A crítica à validez constitucional de tais Medidas Provisórias (e, eventualmente, das respectivas leis ratificadoras) está na formulação teórica de Konrad Hesse, denominada teoria da irreversibilidade. Segundo esse conceito, uma vez reguladas de determinada maneira garantias constitucionais sociais em favor dos indivíduos, a modificação de tais parâmetros infraconstitucionais não poderia significar retrocesso às conquistas já positivadas, se não instituíssem mecanismos compensatórios, sob pena de incidirem tais reformas em inconstitucionalidade.
Esses postulados teóricos já se vêem praticados e impostos amiúde em acórdãos e decisões monocráticas do STF, que incorporou à sua jurisprudência a teoria da vedação ao retrocesso social, em julgados vários, cujo objeto versava desde políticas públicas em favor de infantes e adolescentes (RE 488208/SC), perpassando questões envolvendo a obrigação do Poder Público de garantir assistência em matéria de saúde (STA – 175/AgR/CE), criação de Defensoria Pública (AI 598.212), até a discussão de matéria envolvendo a demarcação de terras indígenas (MS 32262 – ainda não concluído).
Nesse sentido, a adoção do princípio da vedação ao retrocesso não significa um engessamento das atividades do Poder Executivo ou mesmo do Poder Legislativo na reformulação de políticas públicas e sociais. Melhor que isto, tal princípio impõe o respeito do Poder Público àquele núcleo intransigível de sustentabilidade material do indivíduo, o qual acha-se sustentado pela garantia da dignidade da pessoa humana, bem como de uma proibição de que as garantias sociais conquistadas sejam simplesmente extirpadas do ordenamento, sem sucedâneos ou mecanismos compensatórios que o justifiquem.
Toda vez que, tal como ocorreu com essas fatídicas Medidas Provisórias, a opção do Estado resultar em simples amesquinhamento de direitos sociais para se garantir a ‘sobra’ monetária em setores econômicos menos prementes, estaremos diante das chamadas ‘escolhas trágicas’, a legitimar a intromissão do Poder Judiciário como Guardião do Texto Maior frente a abusos mitigadores daquelas garantias sociais já positivadas em lei.
Veja-se que a reforma introduzida por tais medidas é tão dissociada do saudável e esperado gerenciamento racional dos recursos públicos à vista de um respeito mínimo ao bem estar social que chegou a criar embaraço à fruição imediata de benefícios previdenciários como a pensão por morte e o auxílio-doença, os quais ligam-se a contingências não planejadas, como a morte, acidente e a doença incapacitante repentina.
O artigo 25, inciso IV, da Lei de Benefícios da Previdência Social (com a redação introduzida pela MP 664/14), preconiza ser devido o pagamento do benefício de pensão por morte aos dependentes apenas quando tiverem sido vertidas à autarquia 24 contribuições mensais ou na hipótese de o segurado já estar em gozo de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez.
Qual a razão, com base nesta nova redação, de se excluir da percepção do benefício de pensão por morte à família do trabalhador que, muitas vezes por uma omissão do próprio Poder Público em lhe garantir condições de segurança no trabalho, vier a falecer – sem ter logrado o gozo prévio do benefício de auxílio-doença – após um ano todo de trabalho e de contribuição à Previdência Social? A resposta é iniludivelmente única: reduzir o campo de incidência do benefício, alijando-se trabalhadores em idêntica condição, reduzindo-se custos ao erário.
Por fim, uma vez que tais medidas reduziram o campo de incidência dos benefícios previdenciários sem decréscimo proporcional do montante das contribuições sociais, elas também malferiram a regra da contrapartida prevista no artigo 195, § 5º, da Constituição Federal. Dessa forma, as Medidas Provisórias 264 e 265/2014 devem ser proscritas do ordenamento jurídico brasileiro, seja por sua não-ratificação pelo Poder Legislativo, seja por meio do Poder Judiciário, no bojo do controle de constitucionalidade repressivo ou mesmo preventivo (MS 24.667, STF), por violar inúmeros postulados constitucionais, como o da vedação ao retrocesso social, da proteção ao mínimo existencial, da regra da contrapartida, e da dignidade da pessoa humana.
Sérgio Marques Castro é defensor público federal em São Paulo.
Fonte: Conjur