As cadeias produtivas da agricultura e das agroindústrias têm cada vez mais impactado os recursos naturais em nosso país. Recentemente a água tem se tornado objeto de atenção por conta de diferentes impactos e disputas (muitas vezes não explícitas) relacionadas com a mercantilização das águas doces, que envolve a manutenção dos ecossistemas, a agricultura de alimentos e de exportação, o setor urbano e industrial e a necessidade de garantir a segurança hídrica da população.
Pelo menos quatro fatores merecem ser destacados por terem contribuído para esse quadro atual de avanço do agronegócio sobre a água superficial e subterrânea: (i) a crise da produção de proteína animal, em razão da doença da vaca louca na Europa e nos Estados Unidos; (ii) a urbanização e a mudança de hábitos alimentares em países do Oriente Médio e da Ásia (com destaque para a China); (iii) a elevação da demanda mundial de soja e etanol; (iv) a necessidade de o Brasil obter moedas internacionais para fazer frente aos custos das importações e pagamento da conta serviços.
A doença da vaca louca, no final dos anos 1990, que dizimou boa parte do rebanho bovino principalmente na Europa, foi resultado da adição, na ração, de uma farinha composta por sangue e ossos de animais abatidos. A proibição dessa prática, somada à falta de áreas para a criação em pasto, elevou a importação de soja, com o consequente aumento dos custos de produção, o que desencadeou a transferência da produção de bovinos para fora do continente. Essas foram as principais causas do aumento da produção de soja e bovinos no Brasil.
Para que se tenha uma ideia do peso desse setor em nossa balança comercial, em 2016 a exportação de proteínas animais (carne bovina, suína e aves) representou 20% do total das exportações brasileiras (mais de US$ 14 bilhões), ficando a soja com 5,8% (US$ 4,04 bilhões) do total das exportações.
A Revolução Verde,2 dispondo de vultosos financiamentos internacionais, vendeu a ideia de que o problema da segurança alimentar seria resolvido pela simples adoção de um pacote de tecnologias. Ela permitiu a intensificação da produção para atender à demanda do abastecimento do mercado interno e permitiu exportar commodities da agropecuária. Contudo, em vários países isso trouxe consequências ambientais trágicas, esgotando e contaminando os recursos hídricos com agrotóxicos.
O caso da Arábia Saudita é emblemático. No intento de se tornar um grande exportador de trigo, o país esgotou um importante aquífero que proveu segurança hídrica para sua população durante milênios. Entre 1987 e 2015, o país entrou numa viagem sem retorno, chegou a ser o sexto maior exportador mundial de trigo e em 2016 não plantou um pé de trigo. Como resultado, elevou ainda mais sua dependência da importação de alimentos e iniciou a dessalinização da água do mar para garantir o consumo humano. Outro caso é o sistema de irrigação da amêndoa e do pistache adotado na Califórnia, com níveis de desperdício sem precedentes, levando ao afundamento (subsidência) dos terrenos.
A indústria alimentar vem promovendo erosão genética e uniformização do padrão alimentar mundial com um custo energético, hídrico e ambiental elevado. A base desse sistema, a montante, é a indústria petrolífera, que controla o setor produtor de agrotóxicos, adubos e sementes, e, a jusante, a indústria alimentar, que tenta impor um padrão alimentar de tipo europeu e norte-americano para todo o globo. Cada vez mais o que se come nas grandes cidades ao redor do mundo é a mesma base alimentar. Esse sistema produtivo é responsável pela perda de 30% de todos os alimentos que se produz, conforme dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
Essa uniformização da alimentação e da produção em países tropicais desloca, marginaliza e mina a base alimentar local. Um bom exemplo vem da China, com a introdução da carne bovina na dieta. Esse país também deslocou parte de sua produção e abastecimento de proteínas animal (frango, suínos e bovinos) e vegetal (soja) para a África e a América do Sul. O mesmo ocorreu com a carne de frango nos países árabes. Mais recentemente, na Ásia, os recorrentes surtos de gripe aviária aumentaram a importação de carne de frango.
Esses sistemas de alta produtividade, intensivos no consumo de recursos naturais, são grandes demandadores de recursos hídricos, sejam eles superficiais ou subterrâneos. Essa forma de fazer agricultura, juntamente com o processo de urbanização3 da população, aumenta as batalhas pelo acesso, controle e consumo de água, gerando disputas inexistentes até então.
Para ter uma ideia, enquanto desde 1950 a população mundial triplicou, a demanda por água cresceu seis vezes. No Canadá, entre 1972 e 1991, a população cresceu 3%, e o consumo de água, 80%, segundo a ONU. Na Alemanha, um cidadão consome nove vezes mais água que um da Índia, ou seja, o bem-estar nas sociedades de consumo desenvolvidas está associado à elevação do consumo de água e à disputa pela água entre os usos tradicionais e os novos usos.
No Brasil, esse avanço da produção e da exportação de produtos primários ou semimanufaturados promoveu o deslocamento e a substituição de antigas lavouras e de pastagens pela soja, o milho, a cana-de-açúcar e o algodão, avançando sobre as áreas do cerrado e empurrando o gado em direção à floresta amazônica, juntamente com o cultivo de soja.
Nessa conjuntura de aumento da demanda internacional por commodities agrícolas e obtenção de moeda internacional, no segundo governo FHC foi retomado um conjunto de políticas para elevar os volumes de produção por meio do fomento à produção, da modernização de parte do setor da agricultura familiar via crédito subsidiado, da renovação do parque de máquinas e implementos, da assistência técnica e do apoio à comercialização e à exportação. Essa política teve sua continuidade nos governos Lula e Dilma.
Assim, nos últimos dezenove anos, tivemos o fortalecimento econômico e político do setor ruralista de tal forma que se convenceram diferentes segmentos da sociedade de que a finalidade do agronegócio é o bem de todos. Com isso, conseguiu-se o apoio de parte da esquerda na mudança promovida no Código Florestal. Esse setor, após o golpe de 2016, apresentou um conjunto de propostas regressivas, como mudar a legislação trabalhista no meio rural, afrouxar o licenciamento ambiental, travar a definição de trabalho escravo, suspender a demarcação dos territórios indígenas e quilombolas, retomar a exploração de minérios na região amazônica, entre outras.
A postura revela que os ganhos do agronegócio têm forte dependência da dilapidação dos recursos humanos e naturais. Dessa maneira, terra, água e mão de obra oferecidas a preços baixos distorcem as decisões relacionadas com a produção agrícola e com a exportação de alimentos e ficam expostas nas propostas de alteração da legislação apresentada por esse setor a fim de aumentar os impactos ambientais do agronegócio exportador.
Esse aparente consenso em torno da importância do agronegócio para o país gerou uma postura um tanto passiva nas diferentes esferas do governo e fica bem marcado nos conflitos e disputas pelo acesso à água, como ocorre na Bacia do São Francisco, na atual crise hídrica do Distrito Federal.
Nosso país, em função de sua formação geográfica, ambiental e do regime de chuvas, consegue obter duas colheitas anuais em lavouras de sequeiro (não irrigadas). Isso explica por que até o presente somos o país com a menor taxa de áreas irrigadas na América Latina: apenas 16%.
Segundo o Censo Agropecuário do IBGE de 2006, o número de estabelecimentos agropecuários que irrigam seus cultivos é de 329 mil, num universo de 4,5 milhões. Esses estabelecimentos constituem 7% da área agrícola do país (4,5 milhões de hectares); seu volume representa 16% do total e gera 35% do valor comercializado pela agricultura brasileira. Entretanto, as perdas na irrigação são muito altas, não apenas no Brasil. A FAO estima que, no mundo, cerca de 70% do volume de água ofertado nos perímetros irrigados se perde por evaporação ou percolação. A redução de 10% desse volume permitiria abastecer metade da população mundial.
É importante esclarecer que a água é vital para a produção agrícola e a criação animal. A questão está na quantidade consumida. O nó é que, quanto maior a produtividade e a velocidade de desenvolvimento da planta, maior o consumo de água. Até recentemente esse tema não fazia parte da agenda daqueles que trabalham com o melhoramento das plantas.
Para ter uma ideia do que representa esse consumo, empregando-se a metodologia da pegada hídrica,4 para produzir 1 tonelada de legumes, trigo, soja e gado bovino, o consumo de água é, respectivamente, 1 milhão de litros, 1,45 milhão de litros, 1,8 milhão de litros e entre 15 milhões e 42,5 milhões de litros. Outra análise para avaliar a eficiência do consumo de água é a renda gerada em dólar por quilograma vendido – no caso dos legumes, a média é de US$ 0,50; para o trigo, US$ 0,08; e, para a carne bovina, US$ 0,005.
Quando se analisa o aumento no volume das exportações brasileiras de soja, carne e açúcar e, consequentemente, constata-se o aumento do volume de água embutido nessa produção, conclui-se que é necessário pensar sobre os possíveis impactos ambientais que a exportação de produtos primários e semimanufaturados pode estar tendo sobre nossos recursos hídricos. Entre 1997 e 2005, o volume de água empregado na produção e exportação apenas nesses três produtos saltou de 27,1 bilhões de litros para 460,1 bilhões de litros.
O avanço do desmatamento da Amazônia, a pressão agroexportadora e as mudanças climáticas colocam em risco essas vantagens comparativas naturais, já que a previsão é o aumento de períodos maiores de seca e crise hídrica para nossa população. Esse quadro elevará a demanda das águas superficiais e subterrâneas e poderá afetar a vida dos rios perenes e dos ecossistemas, já que são as águas subterrâneas que perenizam o leito dos rios e são exploradas quase sem controle pelos órgãos estaduais.
No caso do São Francisco, essa situação é preocupante, pois o aumento da captação de águas subterrâneas para irrigação de lavouras no norte de Minas (fruticultura) e no oeste baiano (soja e algodão, principalmente) tem como fonte o Aquífero Urucuia. Esse aquífero, no período das secas, é responsável por mais de 80% do volume de água do Rio São Francisco. Também é aí que ocorre a derivação de suas águas para o semiárido. Ou seja, existem diferentes tipos de uso, e é a pressão da sociedade civil que leva os órgãos gestores a agir.
Recentemente, a crise de abastecimento de água no Distrito Federal tem levantado a mesma questão sobre os diferentes tipos de uso e quem vai pagar a conta da falta de água. Em São Paulo, a crise hídrica dos anos 2013-2015 atingiu pelo menos 78 cidades do interior, cujo abastecimento de água depende dos mananciais superficiais, o que acende uma luz para os processos de uso e ocupação do solo nessas bacias hidrográficas tomadas pelas culturas do eucalipto e da cana-de-açúcar, que promovem o avanço desordenado sobre a captação de águas subterrâneas.
É importante ressaltar que, do total da chuva precipitada, 80% é perdida para a atmosfera pela evapotranspiração, 10,8% vai para os aquíferos e 9,2% escorre superficialmente. Dessa maneira, as práticas conservacionistas mostram-se extremamente relevantes para garantir o armazenamento de água para a planta, a manutenção da vazão dos rios e a promoção da recarga dos aquíferos.
Ao mesmo tempo, além do aumento considerável no consumo de água, o desmatamento da Amazônia pela expansão da soja e criação de gado bovino coloca em risco o mecanismo de formação das chuvas de interior, produto dos chamados rios voadores formados pela evapotranspiração da floresta que é levada pelos ventos para os Andes e de lá desce e precipita nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Esse processo terá impacto não apenas sobre a vida humana, mas também sobre os ecossistemas e toda a economia.
Por entender que a água é um bem comum, e não uma mercadoria, e para discutir processos de gestão democrática e se contrapor à apropriação privada e predadora pelos diferentes setores exportadores de commodities, entre eles o agronegócio, um conjunto de organizações da sociedade civil decidiu organizar o Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama) 2018, a ser realizado em março, em Brasília.
*Osvaldo Aly Junior, engenheiro agrônomo, membro da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), doutorando em Gestão de Águas Subterrâneas no IGc-USP, é pesquisador do Nupedor/Uniara-SP.
Fonte: Le Mond Diplomatique
23:17:24
2017-06-19