Por que a prisão preventiva de Temer não deve ser comemorada

Jurídico Notícias

Por Daniel Caseiro – Justificando

Na manhã da última quinta-feira, 21 de março, o ex-presidente Michel Temer (MDB-SP) foi preso preventivamente pela 13º fase da Operação Lava-Jato.

Sua prisão foi comemorada nas redes sociais entre grupos de todo o espectro político, da esquerda à direita – dado não tão surpreendente considerando que Temer apenas assumiu a chefia do poder Executivo após o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, terminou seu mandato com altos índices de impopularidade (4% de aprovação e 78% de reprovação) e foi chamado, pelo próprio juiz que decretou sua prisão, de “chefe de uma organização criminosa que atua no Rio de Janeiro há 40 anos”.

Entretanto, mesmo com tamanha impopularidade, a prisão de Michel Temer e, principalmente, sua celebração, foram criticadas por juristas de tradição progressista que as classificaram como expressão de um punitivismo, banalização e espetacularização que tem dominado a tônica da Justiça Penal brasileira.

Entenda o que é a prisão preventiva, quais foram os fundamentos do Juiz Federal Titular da 7ª Vara Federal Criminal do Rio, Marcelo da Costa Bretas, para decretar a prisão de Temer e quais são as críticas a esse tipo de medida.

O que é a prisão preventiva

No sistema penal brasileiro existem dois tipos de prisão:

1. Aquela que ocorre ao final do processo penal – depois que todas as provas foram juntadas e avaliadas, depois que a acusação e o réu foram ouvidos – e decorre da sentença condenatória transitada em julgado é chamada de Prisão Penal. É a esse tipo de prisão que geralmente nos referimos quando dizemos que “Fulano foi preso”.

2. Aquela que ocorre antes do final do processo, antes do réu ter chances de se defender, e apenas em casos excepcionais permitidos por lei. É a chamada prisão cautelar (que também recebe os nomes de prisão provisória ou prisão processual). Exatamente por ser a exceção e não a regra, a prisão cautelar só pode ser decretada pelo juiz nos casos previstos na lei, quais sejam: prisão em flagrante, prisão temporária e a prisão preventiva.

O primeiro caso trata das hipóteses nas quais a polícia encontra o indivíduo cometendo o crime, ou seja, quando ele é “pego” em flagrante – nestas situações não é necessário aguardar a conclusão do processo judicial, a polícia pode prender o infrator no ato, ainda que provisoriamente.

O segundo e o terceiro casos são parecidos entre si e só se diferenciam pelo fato do primeiro, a prisão temporária, se dar no curso da investigação policial (antes de sequer existir um processo e um juiz) e o segundo, a prisão preventiva, se dar no curso do processo judicial (mas antes da sentença). Como os nomes sugerem, esse tipo de prisão foi pensado como “preventivo” e “temporário” e, em ambos os casos, objetivam evitar que o investigado/processado frustre a investigação ou o processo criminal (por exemplo, fugindo, ou ocultando e destruindo provas) ou que ele continue a cometer o crime (no caso de crimes que não são consumados em um único ato, mas cuja prática se perpetua no tempo).

Esse tipo de prisão existe, portanto, para garantir o sucesso e continuidade do processo ou investigação (por isso são também chamadas de prisões processuais) e nada tem a ver com o juízo de culpa do investigado ou réu. Por esse motivo, não devem se confundir com a pena de prisão, que é uma das “punições” (sanções) que o juiz pode determinar na sentença, ao final do processo, caso declare o acusado culpado.

A prisão do ex-presidente Michel Temer foi desse tipo. Por isso, ele está preso antes de sua condenação e ficará detido em regime fechado aguardando seu julgamento. Ou seja, o fato dele ter sido preso não significa que ele será julgado culpado pelos crimes dos quais é acusado e não significa que ele continuará preso.

Quanto ao tempo que uma pessoa pode ficar presa preventivamente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), espécie de “fiscal” ou “Ombudsman” interno do Poder Judiciário, recomenda que o prazo de duração da prisão preventiva deva ser de no máximo 30 dias, podendo ser postergada por mais 30. No entanto, na maioria dos casos, este tempo costuma ser estendido acima do limite sugerido.

Requisitos Legais para a aplicação da prisão preventiva

A prisão preventiva pode ser decretada pelo juiz do processo por iniciativa própria (diz-se “de ofício” na linguagem técnica jurídica) ou a requerimento da acusação, conforme determina o art. 311 do Código de Processo Penal (CPP):

Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.

O artigo seguinte do Código traz as hipóteses e o requisitos da prisão preventiva:

Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

Os estudiosos e manuais de direito explicam com mais detalhes o que o artigo 312 diz. São, na prática, dois requisitos, que podemos observar na parte final da redação do artigo: “prova da existência do crime” e “indícios suficientes de autoria” (alguns juristas preferem se referir aos dois requisitos de uma vez com a expressão em latim “fumus comissi delicti”).

Como explicado acima, a prisão preventiva é um tipo de prisão cautelar. Por isso é necessário observar, além destes dois requisitos específicos para a decretação da prisão preventiva, os requisitos gerais para a aplicação de qualquer medida provisória previstos no artigo 282 do Código de Processo Penal (alguns dos quais já mencionados):

I – Necessidade: a. Para aplicação da lei penal (evita-se a possibilidade de fuga); b. Para a investigação ou a instrução criminal (evita-se a obstrução da colheita de provas); c. Para evitar a prática de infrações penais (evita-se a ocorrência de novas práticas criminosas);

II – Adequação da medida à: a. Gravidade do crime; b. Circunstâncias do fato; c. Condições pessoais do indiciado ou acusado.

É comum aos juristas se referirem a todos estes requisitos do artigo 282 em conjunto como “binômio necessidade/adequação” ou ainda pela expressão em latim “periculum libertatis”.

Por fim, o artigo 313 do mesmo Código determina que a prisão preventiva só cabe no caso de crimes dolosos (aqueles nos quais o acusado agiu intencionalmente) e cuja pena máxima prevista em lei seja superior a quatro anos. Os crimes pelos quais o ex-presidente Michel Temer é acusado (corrupção, peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa) se enquadram nestas hipóteses.

Como foi a decisão que determinou a prisão preventiva de Michel Temer

O Juiz Federal Titular da 7ª Vara Federal Criminal do Rio, Marcelo da Costa Bretas, determinou a prisão de Michel Temer em uma decisão de 46 páginas (que você pode ler na íntegra aqui). Como a maior parte das decisões judiciais, ela está dividida em três partes: uma primeira parte chamada Relatório na qual o magistrado faz um resumo do caso; uma segunda parte chamada Fundamentação na qual o magistrado explica e justifica sua decisão; e uma terceira parte chamada Dispositivo ou conclusão na qual o magistrado efetivamente declara sua decisão de forma explícita e direta.

Na conclusão da decisão podemos ler:

DECRETO a PRISÃO PREVENTIVA dos oito investigados, MICHEL MIGUEL ELIAS TEMER LULIA  […]; e assim o faço para garantia da ordem pública e para assegurar a aplicação da lei penal, com fundamento nos artigos 312, caput e 313, I, ambos do CPP;”

Até aí, nenhum problema. Porém, a maioria das críticas que a prisão de Temer tem recebido diz respeito à fundamentação da decisão. Juristas têm apontado as justificativas de Marcelo Bretas como frágeis, criticando-o por não indicar claramente o que o réu teria feito para ser preso e quais as provas que embasam a decisão (lembre-se que dentre os requisitos para a decretação da prisão preventiva estão “prova da existência do crime” e “indícios suficientes de autoria”).

O juiz chega a afirmar de forma genérica que os pressupostos estão presentes no caso, mas não explica com base em que provas chega a essa conclusão:

“[…] tenho por evidenciados os pressupostos para o deferimento da medida cautelar extrema, consubstanciados na presença do fumus comissi delicti, ante a aparente comprovação da materialidade delitiva e de indícios suficientes que apontam para a autoria de crimes como corrupção, peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa.

Encontra-se também presente o segundo pressuposto necessário à decretação da cautelar, qual seja, o periculum libertatis, nestes autos representado pelo risco efetivo que os requeridos em liberdade possam criar à garantia da ordem pública, da conveniência da instrução criminal e à aplicação da lei penal (artigo 312 do Código de Processo Penal).”

Em seguida, ele explica o que entende por “garantia da ordem pública”:

“No que toca especialmente ao fundamento da garantia da ordem pública, o Supremo Tribunal Federal já assentou que esta envolve, em linhas gerais: a) necessidade de resguardar a integridade física ou psíquica do preso ou de terceiros; b) necessidade de assegurar a credibilidade das instituições públicas, em especial o Poder Judiciário, no sentido da adoção tempestiva de medidas adequadas, eficazes e fundamentadas quanto à visibilidade e transparência da implementação de políticas públicas de persecução criminal; e c) objetivo de impedir a reiteração das práticas criminosas, desde que lastreado em elementos concretos expostos fundamentadamente.”

Mais à frente, Bretas justifica sua decisão com uma conjectura, comparando o caso de Temer a outro caso:

“Nesse sentido, deve-se ter em mente que no atual estágio da modernidade em que vivemos, uma simples ligação telefônica ou uma mensagem instantânea pela internet são suficientes para permitir a ocultação de grandes somas de dinheiro, como parece ter sido o caso.

Um exemplo de como outras medidas podem ser ineficazes, no caso, é o resultado de diligências na sede da ARGEPLAN, determinadas pelo STF, no âmbito da Operação Patmos (maio/2017). Como assinalado no Relatório do IPL 4621, alguns escritórios da empresa passavam por limpeza diária, sendo os funcionários orientados a manter os ambientes vazios; além disso, o sistema de registro de imagens (CFTV) da empresa ARGEPLAN também não gravava a movimentação diária (ou eram apagadas). Este fato parece indicar que os investigados estão agindo para ocultar ou destruir provas de condutas ilícitas, o que reforça a contemporaneidade dos fatos, bem como a necessidade da medida mais gravosa.”

Críticas à prisão preventiva para além da técnica jurídica

Críticos à decretação da prisão de Temer questionam a necessidade da medida. Afinal, uma pessoa não precisa estar presa para ser investigada. Como o juiz não apresentou elementos concretos que justifiquem a prisão, especula-se que a prisão do ex-presidente seja mais uma manobra política e midiática do que de uma medida de “efetivação da justiça”.

Considerando-se o histórico de atuação da Lava Jato – que fez cinco anos na semana passada – e as recentes derrotas sofridas pelos procuradores da operação (por exemplo, com relação ao “Fundo Lava Jato”, que foi vetado), esta não é uma hipótese absurda: a prisão de Michel Temer teria sido decretada com o maior estrondo midiático possível para passar uma mensagem de força para a Operação.

Banalização e espetacularização da prisão preventiva

“Em nome de um ilusório combate à criminalidade e como forma de antecipação da tutela penal, a prisão preventiva vem sendo decretada a rodo – notadamente nas operações espetaculosas das forças tarefas que unem a Polícia Federal, o Ministério Público e a Justiça Federal – em assalto aos direitos e garantias fundamentais”, afirmou ao Justificando Leonardo Isaac Yarochewsky, advogado e professor e Doutor em Ciências Penais (UFMG).

“A famigerada operação Lava Jato tem se notabilizado, entre outras coisas, pelo excesso de prisões provisórias, muitas delas para servir de moeda de troca para delações que são premiadas com a liberdade e com inimagináveis reduções de pena ao arbítrio do juiz”, completa Yarochewsky.

Mas não se trata somente de um problema da Lava Jato, explica o jurista. O direito penal de modo geral e as medidas e penas de prisão em específico deveriam ser utilizadas apenas em último caso, como medida extrema de intervenção do Estado na esfera de direitos dos indivíduos, ainda que condenados. Porém, essas medidas extremas tem se banalizado e frequentemente lança-se mão delas na primeira oportunidade, de forma irresponsável. “Há muito as prisões provisórias (preventivas ou temporárias) deixaram de ser uma exceção – a ultima ratio – para se tornarem a regra. Por mais que se diga que a prisão cautelar somente deva ser decretada em nome da extrema necessidade e, mesmo assim, quando não há outro remédio processual menos gravoso em substituição, esta vem perdendo o caráter provisório e excepcional se transformando em definitiva”.

Em seu livro Processo Penal do Espetáculo, Rubens Casara, que é juiz do Tribunal de Justiça do Rio, professor e doutor de Direito Penal e colunista do Justificando, explica os problemas de se substituir, nos julgamentos judiciais, a lógica da garantia de direitos pela lógica do espetáculo:

“O espetáculo não deseja chegar a nada, nem respeitar qualquer valor, que não seja ele mesmo. A dimensão de garantia, inerente ao processo penal no Estado Democrático de Direito (marcado por limites ao exercício do poder), desaparece para ceder lugar à dimensão de entretenimento […] O caso penal passa a ser tratado como uma mercadoria que deve ser atrativa para ser consumida. A consequência mais gritante desse fenômeno passa a ser a vulnerabilidade a que fica sujeito o vilão escolhido para o espetáculo”.

Punitivismo e populismo penal

Punitivismo é uma mentalidade ou forma de se pensar a justiça focada quase exclusivamente na punição daqueles considerados “bandidos”. Quanto maior, mais severa e mais exemplar a punição, melhor. Em termos de criminologia e direito penal, é uma abordagem que não questiona as causas do crime, os fatores históricos, sociais, políticos, econômicos que levam indivíduos a cometerem crimes, não questiona a criação da lei penal (porque algumas condutas são consideradas crimes e outras não?) e não questiona, sequer, a efetividade da aclamada punição na diminuição da criminalidade.

Atualmente, a mentalidade punitivista se expressa em bordões como “bandido bom é bandido morto”, “direitos humanos apenas para humanos direitos”, “deixar apodrecer na cadeia”, “tem mais é que morrer preso”, e em discursos que insistem em pregar que o Brasil é o país da impunidade e que as leis penais brasileiras são muito brandas, apesar de todos os estudos e estatísticas que demonstram o contrário.

Quando as instituições do sistema penal compactuam com essa mentalidade para satisfazer os desejos catárticos de justiça vingativa da população, seja por meio de novas leis penais mais rígidas promulgadas pelo Legislativo, ou por meio de medidas dramáticas tomadas por juízes ou pelo Ministério Público, diz-se se tratar de casos de “populismo penal”.

“Mas esse prazer pela prisão alheia é bom?”, questiona o advogado criminalista e professor Evinis Talon. “Há uma diferença básica entre entender a prisão como necessária e comemorar o envio de alguém para o cárcere. Se não entendermos essa diferença, a prisão continuará sendo um instrumento de vingança”, pontua Talon. E completa: “goste-se ou não das figuras presas, não se comemora prisão, principalmente a preventiva, por mais prazerosa que ela aparenta ser”.

Como dito anteriormente, uma característica da mentalidade punitivista é optar sempre pela punição mais grave, ainda que seja possível resolver a situação de conflito com a lei de outras maneiras menos onerosas para a sociedade e para aquele que está sendo punido.

Em relação à medida de prisão preventiva, o advogado criminalista Marcelo Feller ressalta que a lei brasileira já prevê outras medidas menos gravosas que podem e devem ser aplicadas no lugar da prisão. “Existem outras maneiras de se controlar aquele que está respondendo a um processo, como retirar seu passaporte, exigir que ele compareça uma vez por mês no fórum, entre outras”, explica Feller.

Não se trata apenas do caso Temer

Banalização do direito penal, populismo penal e punitivismo estão intimamente relacionados com duas outras mentalidades que têm retomado fôlego nas sociedades contemporâneas.

A primeira é a criação de um “Direito Penal do Inimigo”, que seria a materialização, nas Leis e instituições jurídicas, da ideia de que existem dois tipos de pessoas: aquelas que merecem e possuem direitos e aquelas que, por serem consideradas “inimigos” (bandidos, traficantes, comunistas, degenerados, corruptos…), não possuem direitos.

A estas pessoas só restaria a punição, o que nos leva à segunda mentalidade que volta a ganhar força: a ideia de eugenia social, de “limpar” a sociedade daqueles considerados indignos de viver nela (novamente, os inimigos).

A aplicação destas mentalidades combinadas se traduz em políticas criminais como a “Guerra às Drogas” ou a construção de mais presídios, cujos resultados podem ser observados nas estatísticas brasileiras. Segundo o Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), o Brasil possui a terceira maior população de presos do mundo: eram 726.712 pessoas privadas de liberdade em 2016 (em regimes fechado e aberto), número que só continuou a crescer.

Desse total, 40% dos presos ainda não foram julgados. Ou seja, quase metade dos presos brasileiros não estão na cadeia porque foram sentenciados culpados por algum crime, estão presos por medidas cautelares. Foram presos provisória ou preventivamente, como Michel Temer.

No caso do ex-presidente, apesar do escândalo midiático, podemos supor que Temer terá condições (dinheiro e o acesso a bons advogados) para se defender e, quem sabe, em breve estará respondendo a seu processo em liberdade.

Mas não é esta a realidade dos outros 290.684 presos provisórios no Brasil. Ainda segundo dados oficiais, 64% da população carcerária brasileira é composta de pessoas negras, 55% têm entre 18 e 29 anos de idade (portanto, jovens), 94% são do sexo masculino e 6% é formada por mulheres.

Em termos de escolaridade, 61% dos presos no Brasil não completaram nem mesmo o ensino fundamental. Desnecessário dizer que a quase totalidade dessas pessoas é pobre.

Portanto, quando se critica a atuação judicial em um caso como o de Michel Temer, não se deve pensar apenas em termos de “pessoalismos”. Michel Temer é uma exceção perante a realidade brasileira. Mas as forças postas em ação para a realização de seu aprisionamento à revelia das garantias penais tem se tornado a regra. Uma regra que atinge com muito mais incidência aqueles que não possuem um cargo de presidente da República no currículo, ou alguns milhões na conta.