Os senhores do mundo

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Agora a grande imprensa, a TV e os partidos no governo tratam as movimentações de Temer comprando com o dinheiro público o voto de deputados para evitar sua cassação eprisão como algo normal, que faz parte da política. As emendas parlamentares, a nomeação de prepostos, a anistia de dívidas de empresas, o favorecimento do agronegócio, vale tudo para garantir a permanência no poder. Essas operações custam bilhões aos cofres públicos, dinheiro seu, meu, de todos os contribuintes. Não se fala mais que o uso do dinheiro público pelo presidente da República para salvar a própria pele é crime. Está longe o tempo em que as “pedaladas fiscais” davam motivo para a cassação da Presidência da República.

A cada dia aumenta mais nossa surpresa diante da ousadia e desfaçatez com que se faz corrupção à luz do dia. As malas de dinheiro filmadas pela polícia não são provas para levar nem Temer nem o senador Aécio Neves para a cadeia. Mas a questão da corrupção, ainda que importante de ser combatida, é apenas a fachada; é preciso ir além na compreensão do que se passa. O desastre é maior.


A população assiste estarrecida ao desmonte do Estado, ao colapso das políticas públicas, à privatização deslavada do patrimônio de todos, à degradação dos salários e dos direitos trabalhistas, ao corte das políticas de assistência aos mais pobres. O contingenciamento dos gastos pelo governo, assim como o teto estabelecido para o gasto público, impõe um rastro de destruição: hospitais e postos de saúde tendo de fechar as portas ou reduzir seu atendimento por falta de condições operacionais; universidades e escolas públicas sem recursos; pesquisa científica paralisada; professores sem receber regularmente seus salários; funcionários da saúde com o salário em atraso; obras públicas paradas…

A sanha privatista quer reduzir de tal forma a capacidade de o Estado intervir na economia (e eventualmente regular as atividades dos grandes conglomerados) que se propõe a acabar com as empresas estatais, privatizar bancos públicos, rodovias, portos, aeroportos, ferrovias, apequenar o BNDES, encolher as políticas públicas para dar lugar à iniciativa privada nas áreas principalmente de saúde, educação e previdência.

A crise financeira de 2008 permitiu uma ainda maior concentração bancária. De 2008 até agora, os quatro maiores bancos brasileiros – Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, Itaú e Bradesco –, que detinham metade do mercado, passaram a deter três quartos.1

Os poderes que estão impulsionando essa destruição do que é público e transformando tudo em mercadoria são os fundos de investimentos e os grandes bancos privados. Se antes já determinavam o ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central, sequestravam da política a gestão da macroeconomia e submetiam todo o país aos seus interesses particulares de maximizar os lucros, hoje impõem um novo padrão de espoliação, sem nenhuma consideração por suas consequências. O contrapeso da democracia como limite para a voracidade do lucro não existe mais, o Congresso foi comprado por eles.

Como se estivessem numa ilha isolada e não fizessem parte deste Brasil, os grandes bancos anunciam os lucros de 2017. O Sistema Financeiro Nacional teve um lucro líquido de R$ 44 bilhões no primeiro semestre de 2017. Esse lucro foi de R$ 45 bilhões em 2016 e R$ 50 bilhões em 2015, nos mesmos períodos.2 Em plena crise econômica, eles não são afetados; ao contrário, crescem na crise. Ao lado dessa lucratividade, e por causa dela, aprofunda-se a pobreza para as grandes maiorias.

As consequências são notórias e nos amedrontam. Basta ver a situação do Rio de Janeiro, a violência que se generaliza pelo país, a crise das instituições públicas, as violações de direitos, a crise da democracia. Essa política dá num beco sem saída onde as grandes maiorias são espoliadas de seus direitos, os salários são reduzidos, as políticas sociais são cortadas e/ou precarizadas, e a tensão social e a violência aumentam.

As “políticas de austeridade”, como é chamado esse novo padrão de espoliação da sociedade, estão sendo impostas globalmente e, no caso da Grécia, implicaram um retrocesso de trinta anos na qualidade de vida da população. Em nosso caso, o desastre está se materializando agora; não sabemos os limites dessa espoliação.

É interessante observar, porém, que mesmo no mundo das organizações multilaterais começam a surgir alertas de que esse caminho leva a um beco sem saída, ao empobrecimento das maiorias, à barbárie na sociedade, à instabilidade política e a regimes cada vez mais autoritários.

O relatório deste ano publicado pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) denuncia como responsáveis pela crise atual as políticas de ajuste, assim como a doutrina ultraneoliberal, e aponta a saída com políticas contrárias às atuais: um novo New Deal global, em que o Estado e o investimento público tenham papel central na recuperação da economia, dos salários e do consumo.3

A questão que desafia a todos é como os governos nacionais e os órgãos multilaterais terão capacidade para controlar esses poderosíssimos grupos financeiros que se tornaram senhores do mundo. A Unctad novamente nos alerta de que não há possibilidade de um país, isoladamente, tentar controlar esses poderes de fato. Terá de ser uma ação internacional, com o apoio de Estados nacionais. E o caminho é a radicalização da democracia, coisa que começa no plano da sociedade, em cada país, com a mobilização cidadã.

Silvio Caccia Bava é diretor do Le Monde Diplomatique Brasil

1 “BC vê mais concentração e ativos problemáticos”, Valor, 25 out. 2017.

2 Roberto Luis Troster, “O lucro dos bancos”, Valor, 24 out. 2017.

3 Unctad, “Trade and Development Report 2017 – Beyond Austerity: Towards a Global New Deal” [Relatório de Comércio e Desenvolvimento 2017 – Para além da austeridade: rumo a um novo pacto global].

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