Em dia de sangue, Câmara aprova MP que legaliza grilagem e prejudica os mais pobres

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“Em Brasília, 19 horas.

Está no ar a voz do Brasil, as notícias do governo federal que movimentaram o país no dia de hoje. Quarta-feira, 24 de maio de 2017. E vamos aos destaques do dia: presidente Michel Temer determina ação das Forças Armadas para conter protestos violentos.”

A voz do Brasil cotidianamente nos traz o ritmo de rotina, lembrando que o expediente de trabalho está próximo do fim e é hora de voltar para casa. A casa pode ser logo ali para quem tem o privilégio de morar próximo ao trabalho, mas a casa pode estar a uma distância de dois dias de ônibus, para aqueles/as trabalhadores/as que viajaram até Brasília para exercer seu direito de manifestação e defender parte dos direitos que ainda restam garantidos.

Mulheres, homens, estudantes, trabalhadores, representantes dos movimentos sociais, urbanos e rurais, pessoas que passam a vida lutando por direitos, porque não lhes é dada outra alternativa à sobrevivência, formavam, no dia 24 de maio de 2017, no Eixo Monumental em Brasília, uma homogeneidade heterogênea, um grupo organizado e diverso, unidos por uma força construída na trajetória das lutas. A Esplanada dos Ministérios estava repleta de pessoas, pessoas que sabem que direitos jamais nos foram concedidos, mas que são sempre conquistados, com trabalho, suor e sangue.


Trabalho e suor são as armas que se tem para lutar contra as desigualdades, grande parte delas decorrentes de nossa história de colonização e referendadas por uma Constituição Federal, que, como documento símbolo da transição da ditadura para a democracia, deixou de fora de suas aspirações democráticas a importância de se compartilhar a terra.

Previu que a propriedade não teria caráter absoluto e que deveria cumprir a sua função social, garantia que é reiteradamente desrespeitada pela institucionalidade. Foi prevista constitucionalmente num momento em que os grupos ruralistas e especuladores imobiliários ofereciam muito menos resistência, sua organização ainda não era tão estruturada perante o poder legislativo. A despeito disso, trabalhadores morrem diariamente lutando pela terra. Sangue é o saldo desse confronto.

Apesar de reconhecermos que o texto constitucional ainda deixou a desejar, surpreende pensarmos que nos dias de hoje, com a composição de forças que há no Congresso Nacional, jamais conseguiríamos aprovar texto com tantas garantias como o de 1988. Muitos desses direitos estão sendo enterrados por esse governo ilegítimo por falta de uso.

Menos aberto e participativo que o debate realizado no fim da década de 1980, em 2014 intensifica-se no âmbito do Congresso Nacional a polêmica sobre reintegração de posse e seus requisitos em caso de terreno ocupado por população de baixa renda. Naquele momento, no entanto, discutia-se a reforma do Código de Processo Civil. Fomos chamados de antiquados, atrasados, ao reivindicarmos a previsão em lei federal da garantia de cumprimento da função social da propriedade. Tal instrumento “ficou velho”(?) sem sequer ser aplicado em sua plenitude. Os despejos seguem violentos e a terra concentrada, moradores e ocupantes de imóveis vazios são violentados por reivindicar que cumpram a sua função social. Sangue continua sendo o saldo desse confronto.

Em 2017 avançamos no tempo e retrocedemos nas garantias

Resquício ditatorial muito utilizado pelo poder Executivo, a Medida Provisória n. 759/2016 foi editada com a finalidade de jogar uma pá de cal na regularização fundiária da população de baixa renda e garantir que a alta renda, especialmente de Brasília, possa ter suas propriedades de luxo regularizadas. Se há 3 anos a função social da propriedade já era considerada pelos congressistas previsão ultrapassada, aqui o governo ilegítimo tratou de soterrá-la. De caráter eleitoreiro, visando a interesses específicos de grupos privilegiados em Brasília, a Medida Provisória representa um retrocesso no cenário da política urbana. As previsões legais desconsideram a construção legal e democrática ao longo dos anos.

Às 19 horas do dia 24 de maio de 2017, com a naturalidade de quem narra uma rotina, a Voz do Brasil informou que o presidente Michel Temer determinou ação das Forças Armadas para conter protestos violentos. Na sequência, com a naturalidade de quem vota um projeto de lei de apelo popular, a Câmara dos Deputados aprovou a MP n. 759/2016. Mais tarde o Hemocentro de Brasília divulgou nota pedindo doações de sangue, pois após o massacre na esplanada, o estoque acabou. Novamente o sangue foi o saldo do confronto.

A Medida Provisória n. 759 vem na contramão da legislação que trata da política urbana, ela anistia e autoriza a grilagem de terra, e ao mesmo tempo suprime previsões garantidoras de direitos da população menos favorecida. A sociedade civil trabalhou duro, apresentou emendas, participou de inúmeros debates e audiências públicas, reuniu-se com parlamentares, manifestou-se nas ruas, resistiu. O governo, capitaneado pelo presidente Câmara, aproveitou-se, sorrateiramente de uma situação de completo autoritarismo, em que parte considerável dos deputados não estava presente, para aprovar a Medida Provisória que suprime centenas de direitos.

Enquanto a população era massacrada nas ruas, o governo jogava pelo ralo anos de luta pelos direitos que em segundos foram revogados. Resta ainda a batalha no Senado Federal

É com a naturalidade de quem tem sangue correndo nas veias que fecho os olhos e resgato em instantes parceiros de uma vida com quem em algum momento compartilhei um momento de luta, um espaço de esperança. Façamos como ensina Pepe Mujica, apliquemos um princípio simples: reconheçamos os fatos. Abandonemos a visão embaçada, que nos impede de ver que desigualdades são produzidas, assim como injustiças. Olhemos de verdade, reconheçamos os fatos, enquanto nossos esforços estiverem direcionados para esse modelo de construção de país, o saldo dessas batalhas será o sangue do trabalhador!

Sabrina Durigon Marques é advogada urbanista, mestre em Direito Urbanístico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Fonte: Justificando

19:38:59

2017-05-25

“Em Brasília, 19 horas.

Está no ar a voz do Brasil, as notícias do governo federal que movimentaram o país no dia de hoje. Quarta-feira, 24 de maio de 2017. E vamos aos destaques do dia: presidente Michel Temer determina ação das Forças Armadas para conter protestos violentos.”

A voz do Brasil cotidianamente nos traz o ritmo de rotina, lembrando que o expediente de trabalho está próximo do fim e é hora de voltar para casa. A casa pode ser logo ali para quem tem o privilégio de morar próximo ao trabalho, mas a casa pode estar a uma distância de dois dias de ônibus, para aqueles/as trabalhadores/as que viajaram até Brasília para exercer seu direito de manifestação e defender parte dos direitos que ainda restam garantidos.

Mulheres, homens, estudantes, trabalhadores, representantes dos movimentos sociais, urbanos e rurais, pessoas que passam a vida lutando por direitos, porque não lhes é dada outra alternativa à sobrevivência, formavam, no dia 24 de maio de 2017, no Eixo Monumental em Brasília, uma homogeneidade heterogênea, um grupo organizado e diverso, unidos por uma força construída na trajetória das lutas. A Esplanada dos Ministérios estava repleta de pessoas, pessoas que sabem que direitos jamais nos foram concedidos, mas que são sempre conquistados, com trabalho, suor e sangue.

Trabalho e suor são as armas que se tem para lutar contra as desigualdades, grande parte delas decorrentes de nossa história de colonização e referendadas por uma Constituição Federal, que, como documento símbolo da transição da ditadura para a democracia, deixou de fora de suas aspirações democráticas a importância de se compartilhar a terra.

Previu que a propriedade não teria caráter absoluto e que deveria cumprir a sua função social, garantia que é reiteradamente desrespeitada pela institucionalidade. Foi prevista constitucionalmente num momento em que os grupos ruralistas e especuladores imobiliários ofereciam muito menos resistência, sua organização ainda não era tão estruturada perante o poder legislativo. A despeito disso, trabalhadores morrem diariamente lutando pela terra. Sangue é o saldo desse confronto.

Apesar de reconhecermos que o texto constitucional ainda deixou a desejar, surpreende pensarmos que nos dias de hoje, com a composição de forças que há no Congresso Nacional, jamais conseguiríamos aprovar texto com tantas garantias como o de 1988. Muitos desses direitos estão sendo enterrados por esse governo ilegítimo por falta de uso.

Menos aberto e participativo que o debate realizado no fim da década de 1980, em 2014 intensifica-se no âmbito do Congresso Nacional a polêmica sobre reintegração de posse e seus requisitos em caso de terreno ocupado por população de baixa renda. Naquele momento, no entanto, discutia-se a reforma do Código de Processo Civil. Fomos chamados de antiquados, atrasados, ao reivindicarmos a previsão em lei federal da garantia de cumprimento dafunção social da propriedade. Tal instrumento “ficou velho”(?) sem sequer ser aplicado em sua plenitude. Os despejos seguem violentos e a terra concentrada, moradores e ocupantes de imóveis vazios são violentados por reivindicar que cumpram a sua função social. Sangue continua sendo o saldo desse confronto.

Em 2017 avançamos no tempo e retrocedemos nas garantias

Resquício ditatorial muito utilizado pelo poder Executivo, a Medida Provisória n. 759/2016 foi editada com a finalidade de jogar uma pá de cal na regularização fundiária da população de baixa renda e garantir que a alta renda, especialmente de Brasília, possa ter suas propriedades de luxo regularizadas. Se há 3 anos a função social da propriedade já era considerada pelos congressistas previsão ultrapassada, aqui o governo ilegítimo tratou de soterrá-la. De caráter eleitoreiro, visando a interesses específicos de grupos privilegiados em Brasília, aMedida Provisória representa um retrocesso no cenário da política urbana. As previsões legais desconsideram a construção legal e democrática ao longo dos anos.

Às 19 horas do dia 24 de maio de 2017, com a naturalidade de quem narra uma rotina, a Voz do Brasil informou que o presidente Michel Temer determinou ação das Forças Armadas para conter protestos violentos. Na sequência, com a naturalidade de quem vota um projeto de lei de apelo popular, a Câmara dos Deputados aprovou a MP n. 759/2016. Mais tarde o Hemocentro de Brasília divulgou nota pedindo doações de sangue, pois após o massacre na esplanada, o estoque acabou. Novamente o sangue foi o saldo do confronto.

A Medida Provisória n. 759 vem na contramão da legislação que trata da política urbana, ela anistia e autoriza a grilagem de terra, e ao mesmo tempo suprime previsões garantidoras de direitos da população menos favorecida. A sociedade civil trabalhou duro, apresentou emendas, participou de inúmeros debates e audiências públicas, reuniu-se com parlamentares, manifestou-se nas ruas, resistiu. O governo, capitaneado pelo presidente Câmara, aproveitou-se, sorrateiramente de uma situação de completo autoritarismo, em que parte considerável dos deputados não estava presente, para aprovar a Medida Provisória que suprime centenas de direitos.

Enquanto a população era massacrada nas ruas, o governo jogava pelo ralo anos de luta pelos direitos que em segundos foram revogados. Resta ainda a batalha no Senado Federal

É com a naturalidade de quem tem sangue correndo nas veias que fecho os olhos e resgato em instantes parceiros de uma vida com quem em algum momento compartilhei um momento de luta, um espaço de esperança. Façamos como ensina Pepe Mujica, apliquemos um princípio simples: reconheçamos os fatos. Abandonemos a visão embaçada, que nos impede de ver que desigualdades são produzidas, assim como injustiças. Olhemos de verdade, reconheçamos os fatos, enquanto nossos esforços estiverem direcionados para esse modelo de construção de país, o saldo dessas batalhas será o sangue do trabalhador!

Sabrina Durigon Marquesé advogada urbanista, mestre em Direito Urbanístico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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