Algumas reportagens publicadas recentemente pela imprensa, ao abordarem apenas aspectos pontuais do orçamento da Embrapa, acabaram levando à sociedade, de um modo geral, uma visão equivocada da instituição, agravada pelo desespero da administração pública federal diante da quebradeira a que nos levou o desgoverno dos últimos anos.
Avaliando fria e objetivamente a Demonstração de Resultado do Exercício (DRE), a Embrapa é uma empresa que dá “prejuízo”: R$ 456,7 milhões em 2015, e R$ 487,9 milhões em 2016 (https://www.embrapa.br/acessoainformacao/demonstracoes-contabeis)! Em 2016, a receita líquida, representada por royalties, mercadorias e serviços vendidos, foi de R$ 22,4 milhões – apenas 0,7% do orçamento, de R$ 3,028 bilhões. Aplica, ademais, 85% do seu orçamento em despesas de pessoal, como informa, criticamente, o jornal O Estado de São Paulo (http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,embrapa-enfrenta-sua-maior-crise-em-45-anos,70002158390), do dia 21/1/2018.
Estritamente sob este aspecto – resultado contábil (econômico) –, a Embrapa já deveria ter sido fechada há anos! Que irresponsabilidade é essa a de manter, por 45 anos seguidos, uma empresa que só dá prejuízo?
Todavia, há que se observar que a Embrapa não é uma instituição mercantil, como são suas coirmãs estatais: Correios, Infraero, CEF, BB, Eletrobras, Petrobras, etc. Se assim fosse (com o objetivo de geração de lucro financeiro), e na ausência de condição estratégica, não haveria razão para a presença do Estado na pesquisa agropecuária. Essa atividade poderia, simplesmente, ser deixada para a livre iniciativa.
A Embrapa, ao contrário da iniciativa privada, tem uma missão pública: desenvolver ciência, tecnologia e inovação para a agropecuária, em benefício do desenvolvimento socioeconômico do País. Tais atribuições, como estabelece a Constituição Federal, são de responsabilidade do Estado. Por isso, os frutos de seu trabalho não podem ser analisados friamente, com base no resultado contábil (lucro ou prejuízo).
Os conhecimentos e as tecnologias gerados pela Embrapa são de acesso aberto às cadeias produtivas; aliás, muito pouco pode ser protegido. Por isso, o retorno à sociedade deve ser aferido pelo balanço social, resultado da aplicação das tecnologias no campo. Não pode ser avaliado simplesmente pelo fluxo de caixa da Empresa. Se os produtos da pesquisa não estão presentes, com a marca da Embrapa, nas prateleiras dos supermercados, seus resultados estão, porém, inclusos, de forma anônima e geralmente despercebida, em cada prato que se põe à mesa da família brasileira (sem citar os produtos de exportação que fazem do Brasil um dos maiores atores no mercado mundial do agronegócio).
O alegado “prejuízo”, atualmente tão propalado, na verdade deve ser considerado um “investimento” para retornos socioeconômicos muito mais significativos. Dados de 2016, acessíveis no site da Embrapa (buscar por “balanço social”), apontam que seu lucro social foi de R$ 34,88 bilhões, resultado da aplicação e do uso de 117 tecnologias e 200 cultivares. Aqui, cabe fazer breves parênteses para comentar o caso de uma das 46 unidades da Empresa, a Embrapa Gado de Corte. Essa Unidade, localizada em Campo Grande, MS, teve, em 2016, um orçamento de R$ 7,8 milhões (Relatório de Gestão 2016, Embrapa Gado de Corte). Com a identificação e o uso de touros melhoradores, pelos criadores parceiros do Programa Geneplus-Embrapa, estimou-se um retorno à sociedade de cerca de R$ 98,5 milhões, considerando apenas a superioridade, do peso à desmama, de produtos de touros melhoradores em relação ao de bezerros comerciais! Além disso, apenas seis das cultivares de gramíneas e leguminosas lançadas por essa Unidade para a formação de pastagens (Marandu, Piatã, Mombaça, Tanzânia, Massai e Estilosantes Campo Grande) provocaram, em 2016, um impacto de R$ 6,01 bilhões!
Voltando à Embrapa como um todo, o resumo do balanço social demonstra que a instituição devolve à sociedade brasileira R$ 11,37 para cada real investido!
Então, qual a razão para a confusão que se faz, levando a interpretações tão equivocadas?
É que a Embrapa, por uma contingência do destino, nasceu como “empresa”, figura jurídica de direito privado, mesmo tendo missão de interesse genuinamente público!
Na época de sua criação, há 45 anos, essa era a figura jurídica ideal, com suas características de autonomia, flexibilidade e agilidade administrativa, para atender à urgência das mudanças a serem feitas no Brasil. Isso funcionou muito bem até a entrada em vigor da Constituição de 1988. Com a obrigação de atendimento de novas normas legais (com destaque para as leis do Orçamento Geral da União, Licitações e Contratos e Responsabilidade Fiscal), a figura jurídica de direito privado passou, porém, a ser um ônus para a Embrapa, pesando cada vez mais desde o início da década de 1990, com a obrigatoriedade de pagamento de impostos, como qualquer outra empresa!
A Embrapa recebe e depois devolve, anualmente, ao próprio governo, cerca de R$ 1 bilhão, do seu orçamento de R$ 3,5 bilhões, em impostos e encargos sociais de sua folha de pagamento. Isso não faz sentido!
Fundador e primeiro diretor-presidente, José Irineu Cabral deixou registrado em seu livro de memórias que a Embrapa já deveria ter tido a sua figura jurídica mudada para direito público desde o início dos anos 1990 (CABRAL, J. I. Sol da Manhã: memória da Embrapa. Brasília: UNESCO, 2005. Página 209). Nada, porém, foi feito. Mesmo assim, a duras penas, trabalhando em sintonia com parceiros da iniciativa privada e da área de ciência e tecnologia, a Embrapa pode se orgulhar de ter cumprido muito bem sua missão. Com efeito, da condição de insegurança alimentar, vivida na década de 1970, o Brasil passou, em muito pouco tempo, à condição de um dos maiores produtores mundiais de alimentos, com uma produção total daagropecuária (PIB agrícola) de R$ 1,253 trilhão (https://www.cepea.esalq.usp.br/br/pib-do-agronegocio-brasileiro.aspx) e exportações de US$ 86 bilhões(https://www.cepea.esalq.usp.br/upload/kceditor/files/2016.pdf) – dados referentes ao ano de 2016.
Apesar desse sucesso, a Embrapa pode e precisa fazer muito mais. Para um novo ciclo, defende-se a proposta de transformação da Embrapa em Autarquia em Regime Especial, que lhe confere papel de Estado, como defendeu no Senado Federal, em maio de 2014, o então senador Ruben Figueiró (http://www25.senado.leg.br/web/atividade/pronunciamentos/-/p/texto/407050), reavivando ideia que já vinha sendo acalentada desde 2011.
Claro que essa mudança por si só não é suficiente. A Embrapa necessita de uma verdadeira reengenharia, não apenas no sentido de diminuição de custos – como já vem sendo feito pela Diretoria a partir de mudanças nas Unidades Centrais da Embrapa –, mas também, de forma mais ampla, na desburocratização de processos, no resgate da autonomia de suas Unidades Descentralizadas, no aprimoramento do foco da pesquisa para maior sintonia com os sistemas produtivos, enfim, melhorando, cada vez mais, a eficiência do uso de seus recursos materiais, financeiros e humanos para a sua atividade-fim: pesquisa, desenvolvimento e inovação.
Parecer jurídico a respeito da mudança da figura jurídica da Embrapa já se encontra disponível. Por solicitação da Seção Sindical da Sede da Embrapa, com o apoio de outras seções sindicais (Campo Grande, Cenargen, Goiânia, Hortaliças e Rondônia) e da própria Direção Nacional do Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário (Sinpaf), o Escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia, depois de profunda análise da proposta, atestou que essa mudança é constitucional, legal, oportuna, factível, eficaz e benéfica à sociedade brasileira.
Para que isso aconteça, no entanto, é preciso que, internamente, dirigentes e demais empregados exercitem a compreensão, o desprendimento, o espírito cívico e a humildade, para reconhecer o papel da Embrapa nesse novo contexto socioeconômico e legal. Externamente, precisamos de apoio dos parceiros, pessoalmente e por meio de suas organizações, de modo a levar essa ideia adiante, ao Congresso Nacional, e, por intermédio desse, ao Executivo, que detém a competência para a promoção de tal mudança.
O momento é oportuno, diante da vigência da Lei nº 13.303, de 2016 (Lei das Estatais), regulamentada pelo Decreto nº 8.945/2016. Preocupante também é o Projeto de Lei nº 9.215, de 29 de novembro de 2017, apresentado ao Congresso Nacional pelo Executivo, que tem como objetivo a aplicação de um rígido controle de gastos, de forma a reduzir a dependência das empresas estatais federais do Tesouro Público, como adiante se destaca, em alguns dos seus pontos:
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
[…]
Art. 3º A empresa estatal deverá, nas hipóteses previstas em regulamento, apresentar proposta de Plano de Recuperação e Melhoria Empresarial – PRME, com o objetivo de assegurar sua sustentabilidade econômico-financeira, sua eficiência e sua produtividade.
[…]
§ 2º Compete ao Ministro de Estado do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão:
[…]
VII – a qualquer tempo, submeter ao Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República e ao Ministro de Estado da Fazenda proposta de recomendação ao Presidente da República de edição de decreto que tenha por objeto dissolver ou alienar a empresa estatal.
Observa-se, portanto, que o caso é mais sério do que se possa imaginar. A Embrapa – empresa pública de pesquisa – e, justificadamente, dependente do capital público para o cumprimento de sua missão e o custeio de sua estrutura, terá de promover sua “recuperação e melhoria empresarial”, sob pena de ter de se submeter à aplicação do que prevê a alínea VII do art. 3º desse Projeto de Lei: dissolução ou alienação.
Profeticamente, Eliseu Alves, também fundador e segundo diretor-presidente da Embrapa, ao avaliar recentemente a conjuntura da Empresa, registrou, nas conclusões do artigo que publicou: “[…] Nossos procedimentos fazem a produtividade do trabalho decrescer assintoticamente para zero. Antes disso, o governo extinguirá a Embrapa, se não ficarmos atentos!” (ALVES, E.R.A. Ponto de Vista: Fontes de inspiração da Embrapa. Revista de Política Agrícola, Ano XXIII, n. 1, Jan/Fev/Mar, 2014. p. 129-131).
É chegada a hora de mudar! Com a esperança de que venha a acontecer o melhor para a segurança alimentar, para o fortalecimento das cadeias produtivas e para a consolidação do Brasil como um dos maiores produtores e exportadores mundiais de alimentos, energia e fibras, em benefício da sociedade brasileira!
Antônio N. Ferreira Rosa1, Cláudio R. K. Kaminski2, Fernando P. Costa1
1 Pesquisadores e 2Analista da Embrapa, Presidente da Seção Sindical Embrapa Sede – Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Pesquisa e Desenvolvimento Agrário – SINPAF
Fonte: Seção Sindical Sede
11:45:49
2018-02-05