Iniciamos o artigo convidando o leitor a um exercício de imaginação: pensemos que estamos no ano de 2012 e alguém diga que, em cerca de cinco anos, o Congresso Nacional aprovará modificações legislativas que poderão jogar por terra os poucos direitos dos trabalhadores do Brasil. Certamente, ainda em 2012, muitos sustentarão a pouca probabilidade de aprovação de uma “reforma” trabalhista desta espécie, pensando na mobilização social apta a pressionar o Legislativo a manter as garantias legais ao menos favorecidos.
O fato, porém, é que neste ano de 2017 o Congresso Nacional aprovou a tal “reforma”, retirando garantias mínimas dos trabalhadores asseguradas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Agora, conforme a vontade dos congressistas, prevalecerá a “liberdade” do “negociado” sobre o legislado.
Ao contrário do previsto em nosso exercício inicial de imaginação, as ruas das grandes cidades não foram tomadas por manifestantes exigindo, do Legislativo, a manutenção dos seus direitos. Pelo contrário, em que pese a relativamente bem-sucedida greve geral no primeiro semestre de 2017, o Congresso Nacional, ocupado por uma das bancadas mais conservadoras da História, eleita majoritariamente sob o apoio financeiro de grandes grupos empresariais, aprovou tal “reforma” sem grandes dificuldades perante a chamada opinião pública.
O que aconteceu, então?
Em um momento como o atual, é necessário fazer uso da obra de Gramsci para anotar que o poder político e econômico não se mantém apenas pelo uso da força. Mantém-se principalmente pelo consenso, obtido por um sistema de transmissão de ideias (família, igrejas, escolas, meios de comunicação de massa) que consegue fazer com que as parcelas mais desfavorecidas da população adotem, como seus, os valores morais e políticos defendidos pelos grupos dominantes (os valores hegemônicos).
A recentemente aprovada “reforma” trabalhista, defendida pelos grandes conglomerados empresariais brasileiros, veio baseada no valor hegemônico da isonomia entre empregados e empregadores, ambos “iguais perante a lei”. Em tais termos, a partir de agora os dois grupos teriam maior “liberdade” de negociar, sem serem obstados pela “tutela estatal”.
A despeito do caráter evidentemente falacioso de tal raciocínio, a realidade é que o uso dessa ideia de igualdade, para favorecer interesses hegemônicos, não é de hoje. Na realidade, acompanhou a evolução do Estado de Direito desde o seu nascedouro.
Lembramos, nesse sentido, que a Revolução Francesa de 1789, um dos eventos responsáveis pelo advento do rule of law, veio baseada justamente na ideia da igualdade de todos perante a lei. Tal conquista foi desnaturada para justificar o voto censitário (ou seja, só podia votar quem tivesse uma determinada renda) aplicado no período revolucionário: se todos eram iguais perante a lei, todos poderiam obter renda suficiente, de acordo com o próprio mérito, para lograr a posição de eleitor.
Com o advento do sufrágio universal masculino no século 19, em grande parte dos “Estados de Direito”, a mesma ideia de igualdade proporcionou a falsa aparência de que todos poderiam alcançar o ápice do poder político, ainda que contrariamente à vontade das elites econômicas. Claro que desconsiderando todo o mecanismo econômico em torno das campanhas eleitorais e o poder das elites de sabotar qualquer governo de origem efetivamente popular.
A consecução do sufrágio feminino, ao longo do século 20, também trouxe a falaciosa ideia de existir igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. O caráter misógino da recente retirada do poder da única presidenta da História do Brasil (lembremos do “tchau, querida”) evidencia toda a falsidade de tal crença.
A aprovação da “reforma” trabalhista não se deu sob lógica diversa. Se todos são iguais perante a lei, é possível negociar em igualdade de condições. O Estado aparece, assim, como um óbice, um estorvo, um obstáculo à “liberdade” dos cidadãos.
Essa lógica já vem mostrando seus efeitos perversos nas relações entre capital e trabalho. É o que mostra a febre de criação de “pessoas jurídicas” (os “PJs”), ora prevalente, em que seres humanos são compelidos (sob pena de não conseguirem trabalhar em lugar algum) a se transformarem em “empresas individuais” que prestam serviços a grandes conglomerados: uma verdadeira farsa para a não aplicação das proteções da CLT nas relações laborais.
Há, em tais casos, a ideia de que “todas as pessoas” se tornam “empresárias”, donas de seu próprio negócio, acordando, em igualdade de condições, com as grandes empresas que “contratam seus serviços”. Com isso, o ser humano transformado em “PJ” é obrigado a abrir mão de direitos sociais básicos como 13º salário e férias remuneradas, em troca da mesma remuneração pífia que historicamente os trabalhadores brasileiros recebem (uma das responsáveis, aliás, por nos tornar um dos países mais desiguais do mundo).
É preciso lembrar que tal ideia de igualdade é meramente formal: a igualdade perante a lei, que, sim, foi e é fundamental para livrar parte da humanidade de estamentos feudais e possibilitar (ainda que reduzida) a ascensão social de alguns grupos, mas insuficiente para equilibrar as mais diversas relações jurídicas estabelecidas nas sociedades contemporâneas capitalistas, dentre as quais as relações trabalhistas.
Lembramos, a propósito, que a Constituição de 1988, em sintonia com documentos constitucionais de outros países que consagraram o Estado de Bem-Estar Social, contém um projeto de igualdade material, baseado na promessa de construção de sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I). Daí o dever constitucional de atuação especial do Estado objetivando emancipar certas categorias da população, historicamente inseridas em posição subalternas nas relações sociais e econômicas, como os trabalhadores no âmbito dos vínculos entre capital e trabalho.
Faz-se necessário, por tudo isso, que nos desvencilhemos da armadilha ideológica da igualdade formal, apontando sua insuficiência, não apenas do ponto de vista normativo, mas no contexto das relações concretas entre trabalhadores e grandes conglomerados, dotados de condições brutalmente desiguais de negociação.
Evidente que não se trata de tarefa fácil, pois vai em sentido contrário, por exemplo, ao divulgado diariamente pelos meios de comunicação oligopolizados do Brasil – os mesmos que defenderam a tomada de poder por Temer como forma de se “combater a corrupção” – que, em seu papel de divulgação dos valores morais e políticos hegemônicos, cultuam diariamente a ideia da suficiência da igualdade perante a lei (e, por consequência, a ideia de que qualquer um pode ser empresário…) que baseia a “reforma” trabalhista.
A História nos dá o consolo. Não existe evolução linear nas relações humanas. Há progressos e há regressos. Contra todas as regressões, as classes subalternas, sentindo na pele derrotas nem sempre prontamente percebidas, construíram novas formas de resistência.
Somente a mobilização social freará o processo de regressão de direitos que vivenciamos nos dias atuais. O imobilismo é amigo dos projetos hegemônicos. Aproveitemos que temos uma Constituição aliada da mobilização social.
André Augusto Salvador Bezerra é membro e ex-presidente (2014-2017) da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e outras legitimidades da Universidade de São Paulo (Diversitas/USP).