A atual política é incompatível com uma autêntica democracia

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Não há governo democrático sem eleições livres, com a saudável disputa entre partidos políticos, para que o povo possa escolher seus governantes. Esse ideal está muito longe de ser alcançado no Brasil. Temos eleições, mas não temos partidos políticos e a escolha que será feita em outubro será irremediavelmente fraudada. Isso nada tem a ver com a urna eletrônica.

A provocação para este artigo nasceu de dois editorias do jornal O Estado de S. Paulo e do registro de 13 candidatos à Presidência da República. No primeiro, de 4.8.18, O eleitor desencantado, com base em pesquisa que mostra o altíssimo índice de indecisos e de eleitores que não vão votar, ou que vão anular o voto, observa-se que “Não se trata de simples indefinição de voto, situação em que o eleitorado está esperando o início formal da campanha para escolher seu candidato. O contingente de indecisos é grande, mas salta aos olhos a hostilidade de parte substancial dos eleitores em relação a qualquer candidato e, pode-se dizer, à própria política.” Na conclusão, é feito um alerta no sentido de que esse estado de coisas somente mudará “se o eleitor se conscientizar de que políticos corruptos e oportunistas não surgem por abiogênese — alguém os colocou lá. Renunciar à intransferível responsabilidade de escolher bem os representantes políticos significa lavar as mãos e aceitar a degradação da democracia”. Porém, como escolher?

O outro, de 6.8.18, Partidos que são feudos, também com base em pesquisas, mostra que “os partidos políticos no país continuam sendo feudos, controlados por alguns poucos caciques, que atuam como se fossem seus proprietários. As recentes negociações com vistas às próximas eleições mostraram uma vez mais que eventuais coligações entre as legendas não são definidas nas convenções partidárias, com o voto dos respectivos filiados. Tudo é acertado antes pelos mandachuvas, de acordo exclusivamente com seus interesses”. Diante disso, fica bem claro que as opções apresentadas ao eleitor são realmente desanimadoras: resta ao cidadão escolher o menos pior.

Mudanças radicais, para a implantação de uma verdadeira democracia, dependem da convocação de uma verdadeira Assembleia Nacional Constituinte, conforme já expusemos em artigo aqui publicado em 27.4.17 (Por uma Assembleia Nacional Constituinte independente e exclusiva), dado que no Congresso Constituinte de 1988, os parlamentares legislaram para eles mesmos, estabelecendo um sistema político, eleitoral e partidário deliberadamente viciado. Diagnósticos e propostas sobre esse tema existem muitas, mas merece especial destaque o livro do professor Modesto Carvalhosa, Da Cleptocracia para a Democracia em 2019, pela objetividade das análises e pela coerência das proposições. Com relação às eleições de 2018 fica perfeitamente escancarada a desigualdade entre os novos candidatos e os já titulares de mandatos legislativos. Estes dispõem de um exército de “assessores” (cabos eleitorais), da estrutura inteira do gabinete, verbas para correio, gasolina etc. e, principalmente, das emendas individuais ao orçamento (§ 9º do artigo 166 da CF, acrescentado pela EC 86/15) consistentes em verbas públicas que cada parlamentar pode destinar, livremente, a qualquer atividade de interesse de seus apoiadores (seu curral eleitoral) e que o chefe do Executivo não pode deixar de atender. Confira-se nas páginas 55 e 74 do livro mencionado.

Neste texto, o que se pretende demonstrar é a viabilidade de algumas alterações da triste realidade atual, mediante interpretação evolutiva das normas constitucionais, de maneira conforme aos princípios fundamentais de uma República Federativa, na qual o poder é exercido pelo povo, diretamente ou por meio de representante eleitos. A liberdade do eleitor não pode ser cortada pelos interesses dos donos dos partidos, como efetivamente está acontecendo no momento atual. Seja permitido lembrar uma lição doutrinária do ministro Eros Grau, no sentido de que a interpretação deve encaminhar-se para a atualização do direito: “Ela sempre, necessariamente, se dá no quadro de uma situação determinada e, por isso, deve expor o enunciado semântico do texto no contexto histórico presente (não no contexto da redação do texto)”. Hoje, ninguém duvida que, em face da realidade fática, é preciso mudar a interpretação das normas para que se possa restaurar a eficácia e a concreção do princípio republicano democrático.

Por exemplo, em seu artigo 17, ao dispor sobre os partidos políticos, o primeiro dos preceitos fundamentais é o de que os partidos devem ter “caráter nacional”. Essa condição está sendo violentada no momento em que, além da espantosa pluralidade de candidaturas à eleição federal majoritária, existe uma infinidade incalculável de coligações nas eleições, majoritárias e proporcionais, em todos os estados. Adversários no plano nacional são parceiros no plano estadual e vice versa. É absolutamente impossível que o eleitor saiba qual a tendência, o pensamento e as propostas dos candidatos, pois tudo isso faz parte de uma geleia geral, totalmente incompatível com uma autêntica democracia. Em síntese: o eleitor não sabe quem está elegendo.

Outro ponto bem ilustrativo é a questão da fidelidade partidária, exigida pela CF, no § 1º do artigo 17, segundo a qual, no passado, o eleito por um partido perderia o mandato, se mudasse de partido. Como se sabe, nas eleições proporcionais o eleitor vota no partido ou coligação e, apenas em segundo lugar, dependendo de uma série de variáveis, elege alguém. A mudança de partido era de tal modo excepcional, que a EC 91/16 abriu o prazo de apenas 30 dias, para a desfiliação partidária por uma única vez (vale a redundância). Porém, atualmente, contrariando a orientação constitucional, conforme a Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096 de 19.9.95, com a redação dada pela Lei 13.165 de 2015), a cada dois anos é aberto um prazo de trintas dias para o troca-troca ilimitado de partidos, ignorando-se totalmente a vontade do eleitor manifestada nas urnas. Isso é um verdadeiro atentado ao princípio da soberania popular.

É tamanha a desmoralização dos partidos, que muitos deles mudaram de nome, para retirar o essencial: a indicação de que se trata de um partido político. Assim, o PMDB mudou para MDB. Segue-se uma lista de nomes de fantasia, para esconder o partido: Patriotas, Avante, Podemos, Democratas, Solidariedade, Rede sustentabilidade etc. O assunto principal dessas agremiações atualmente é a partilha do Fundo Partidário, outro patente absurdo, pois tendo personalidade jurídica de direito privado, não faz sentido que esses agrupamentos recebam dinheiro público. O absurdo cresceu bastante com a Lei 13.487, de 2017, que criou o Fundo Especial de Financiamento de Campanhas, destinada a substituir as propinas e os caixas 2, 3, 4 etc. conforme afirma Modesto Carvalhosa na página 77 do livro acima mencionado.

Muitos outros absurdos, corrigíveis por meio da interpretação evolutiva dos princípios constitucionais, poderiam ser mencionados, mas um deles merece destaque: a figura monstruosa do pré-candidato, criada pelo artigo 36-A, da Lei 9.504, de 30.9.97, com a redação dada pela Lei 13.165 de 29.9.15. Já cuidamos detalhadamente também desse assunto, neste espaço (Pré-candidatos podem, sim, fazer propaganda eleitoral, de 21.6.18), mas chegou-se ao cúmulo de permitir a campanha de pré-candidatos que não podem ser candidatos, contrariando a chamada Lei da Ficha Limpa, LC 135, de 4.7.10.

No presente momento, o assunto predominante em matéria de Direito Eleitoral é o pedido de registro de candidatura de quem não pode ser eleito. Não há dúvida alguma quanto à inelegibilidade em si mesma, que é incontestável. O problema está em como evitar que essa artimanha venha a tumultuar o processo eleitoral. O formalismo exacerbado criará a figura do candidato “sub judice” e certamente levará a uma espécie de “eleição provisória”. Não se trata de uma candidatura qualquer, mas de um candidato à Presidência da República. É absolutamente imperioso que a pendência seja logo eliminada, pois o abuso de direito, ou a esperteza (no pior sentido), não pode prevalecer sobre os princípios fundamentais da República, comprometendo a estabilidade institucional.

Neste ponto, chegou-se ao ridículo. Com o pedido de registro das candidaturas, as pesquisas eleitorais devem incluir os nomes de todos os supostos candidatos, inclusive de quem não pode ser eleito. Dando nome aos bois: Lula, que é inelegível, postulou o registro da candidatura com um candidato a vice (Haddad), mas já tem preparada uma sub vice (Manuela Dávila). O claríssimo objetivo dessa artimanha é fazer com que seu nome figure na urna eletrônica, com o deslavado propósito de enganar o eleitor. De imediato, já pode alardear ainda mais sua pretensa condição de perseguido político, pois não pode sair da cadeia para participar de debates. A candidatura de inelegível faz lembrar a elementar lição de Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, 9ª edição, 1984, pág. 166) : “Deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis.”.

Para completar, dada a limitação do espaço, chegamos ao cume dos absurdos: a candidatura de pessoa desprovida dos direitos políticos por expressa disposição constitucional. Evidentemente, estamos falando de Dilma Rousseff. Nos exatos termos do disposto no parágrafo único, do artigo 52 da CF, a cassação do mandato do presidente da República implicará, automaticamente, na “inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública”. Ao Senado compete apenas julgar se o presidente da República é culpado ou inocente, da acusação de crime de responsabilidade, sem qualquer possibilidade de alterar a penalidade estabelecida pela CF.

Da mesma forma, não existe, em parte alguma da CF a outorga de poderes ao presidente do Supremo Tribunal Federal para alterar a Constituição. Portanto, presidente condenado no processo de impeachment não pode fazer concurso para escriturário. Mas, graças à indecente omissão do STF (que está sendo conivente com o gritante abuso de poder, perpetrado por um dos membros dessa corporação), uma pessoa desprovida dos direitos políticos poderá candidatar-se ao Senado Federal, salvo se a Justiça Eleitoral cumprir seu dever.

O grande risco é a escancarada militância de alguns ministros do STF, que, em decisões monocráticas, violam a Constituição que deveriam proteger, contrariando, inclusive, decisões colegiadas do próprio tribunal. Atenção: não se está falando de ativismo ou consequencialismo, mas, sim, de militância político partidária. Liminares, habeas corpus e seguimento de recursos incabíveis e despropositados podem minar o andamento normal do processo eleitoral, tornando incerto o resultado das urnas. O Brasil corre o risco de seguir o caminho da Venezuela, da Turquia e da Rússia, países com governos totalitários que chegaram a esse estado sem golpes violentos, mas pela desmoralização gradual da democracia, no melhor estilo gramsciano. O mais importante, no momento, é que a Justiça Eleitoral decida, valendo-se da interpretação evolutiva e sistemática, conferindo a máxima eficácia aos princípios constitucionais fundamentais, considerando o princípio da razoabilidade e, no mínimo, evitando o grotesco e a incoerência que têm contribuído (eficazmente, aliás) para desprestígio do Poder Judiciário.

Voltando ao ponto inicial: sem política não há democracia. Mas a atividade política deve ser exercitada por meio de partidos políticos autênticos, que tenham uma determinada posição ideológica, que se mantenham com as contribuições de seus filiados, que tenham caráter nacional, que observem o princípio da fidelidade partidária, e que pratiquem a democracia internamente, na escolha de seus dirigentes, líderes e candidatos. Tudo isso pode ser conseguido por meio de uma atuação corajosa e independente dos membros do Poder Judiciário, nas suas várias instâncias. Basta interpretar corretamente os princípios fundamentais da Constituição Federal, conferindo-lhes o máximo de eficácia e efetividade, à luz do contexto fático atualmente existente. Até que isso seja feito, as eleições continuarão sendo uma fraude, para manter um arremedo de democracia.

Adilson Abreu Dallari é professor titular de Direito Administrativo pela PUC-SP e consultor jurídico.

Fonte: Conjur